segunda-feira, 2 de abril de 2012

A trajetória de um homem detestável

Hugo Viana



Nas histórias em quadrinhos alguns personagens inspiram admiração e respeito, heróis que são celebrados por sua bravura ou coragem. A nova graphic novel do autor norte-americano Daniel Clowes traz como protagonista alguém que é absolutamente o oposto desse ideal: "Wilson" (Companhia das Letras, 80 páginas, R$ 39).

Wilson é uma pessoa comum sem o censor que geralmente inibe comentários negativos sobre qualquer coisa. Costuma denunciar pessoas estúpidas com ironia terrível, sendo em geral comicamente injusto com a humanidade, ridicularizando sem mágoas adultos sem personalidade ou instituições que provocam queda do nível cultural na sociedade.

É o tipo de pessoa que provavelmente apontaria com sarcasmo gente que fura a fila no cinema ou joga porcaria no chão tendo uma lata de lixo na esquina. Ao mesmo tempo Wilson também ironiza familiares e amigos, o que sugere uma pessoa mais ou menos insuportável. Por algum motivo envia uma caixa cheia de bosta de cachorro para a ex-cunhada, e parece difícil não rir alto da maneira absurda como ele lida com a realidade.

As tirinhas parecem produto da observação de detalhes do cotidiano, pequenas cenas de humor sobre o distanciamento entre pessoas e as novidades tecnológicas. A certa altura Wilson constata que "é meio perturbador ver pessoas passando reto por um mendigo morrendo, mas babando como débeis mentais quando veem um cãozinho", enquanto uma amiga está ao seu lado acariciando efusivamente um cachorro.

A impressão é que Clowes concebeu essas situações no improviso enquanto desenhava, notas cômicas sobre dados reais do cotidiano que surgem meio por acaso durante o dia. Os desenhos mudam de estilo ao longo da história, podem vir realistas, como esboços ou ainda com estética cartum tipo retrô, algo que reforça esse aspecto de criação informal sem roteiro rígido.

As histórias duram apenas uma página, e embora cada uma tenha certa autonomia, narrando um pequeno momento de humor terrivelmente negro da rotina de Wilson, a HQ se torna uma experiência única apenas quando lida inteira, com cada quadrinho complementando os anteriores, descrevendo um longo trecho da vida do protagonista.

Aos poucos entram outros temas, esses mais duros e indefinidos, como a relação distante com o pai, a solidão, a tentativa de aproximação da filha adolescente, as motivações existenciais de um canalha sincero. É quando Wilson deixa de ser apenas uma caricatura que ataca erros cívicos para se tornar uma pessoa com sentimentos e angústias.

Clowes é geralmente celebrado como um dos autores mais significativos dos quadrinhos alternativos norte-americanos (no Brasil foi lançado o ótimo "Mundo Fantasma", que foi adaptado para o cinema, assim como em breve deve ser também "Wilson"). Neste novo trabalho ele cria um personagem que aparenta ser completamente detestável mas que aos poucos mostra um coração desajeitado; um trabalho genial que termina laconicamente como um maravilhoso mistério a ser desvendado.

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