terça-feira, 1 de outubro de 2013

A aventura como testemunho histórico e ficcional

Hugo Viana


Foto: Fred Cabral

Hugo Viana

A aventura é um gênero que parece ter como princípio o interesse em incentivar gerações a expressarem desejos secretos, medos obscuros; eventos históricos são transformados por imaginações sem limites, insinuando a presença enigmática de animais bizarros, geografias remotas, etnias desconhecidas no mundo. 

"Quatro soldados", do escritor gaúcho Samir Machado de Machado, envolve sentimentos associados a grandes aventuras, homens que desbravam terras desconhecidas em busca não apenas de reconhecimento ou ouro, a gratificação emergencial dos marginalizados, mas a própria procura, o percurso encenado, como recurso para compreender a natureza humana.

O livro se divide em quatro partes e se passa no Brasil do século 18, observando o cotidiano de soldados, índios e jesuítas num período de guerras. Aspectos da história do Brasil, da formação da identidade nacional, são protagonizados por quatro personagens: um jovem soldado, fragilizado por traumas passados e pela pouca idade, um desertor idealista que vive de contrabando de livros, um capitão melancólico e um tenente de motivações ambíguas. 

"A atração da aventura é a atração pelo mapa, é a ideia de imaginar uma paisagem e fazer a travessia, fazer o personagem se descobrir confrontando com o desconhecido", sugere o autor. Em seu texto, Samir aplica essa proposta de aventura como uma espécie de ritual de passagem através de sequências baseadas em sentimentos primevos: o que se esconde no escuro, os sons de um terror à espreita. "Talvez o mais atraente na ideia de escrever uma história de aventura seja trabalhar o conceito do prazer da descoberta", ressalta.

Samir recorre a mudanças que simulam o português antigo, alterações na grafia e na fala de acordo com as regras de gramática e normas de conduta social de Portugal e Brasil Colônia do século 18, adequando a escrita ao contexto da história. Há não apenas a tradução de um período histórico, a representação subjetiva do cotidiano de 200 anos atrás, mas a caracterização de uma época essencial na formatação social brasileira, a observação sobre acontecimentos que desenvolveram a política e a geografia nacional. 

As histórias são protagonizadas por personagens de surpreendente profundidade dramática; ao mesmo tempo em que fogem de perigos que desafiam a lógica, investigam cavernas escondidas pelo tempo, o autor insere trechos que apresentam a constituição ética e o rigor moral dos personagens. Samir explica seus métodos para compor os personagens: "Pesquisa, referências (também conhecido como 'roubar ideias de escritores melhores e adaptar às necessidades da minha história'), e alguns toques de experiências pessoais". 

O autor cria ainda um narrador curioso, uma voz que ao mesmo tempo em que relata fatos estranhos interfere nos eventos, optando o que dizer e, também importante, a maneira como contar - uma figura ambígua, que remete à problematização recorrente do narrador fingidor, que não é imune a mentiras ou omissões. Um narrador cuja personalidade interfere na própria concepção da história, e o leitor pode - e deve - desconfiar de seu relato.  

Dessa forma Samir parece conceber uma história única na literatura nacional, um enredo que cativa pela noção de aventura - sugerindo a herança do romance capa-e-espada, narrativas populares que prendem pelo suspense da página seguinte - misturada a uma composição madura de personagens. 

"Nossa visão da História 
é filtrada por intenções, 
omissões e manipulações"

O livro se passa no século 18 e trata da relação entre portugueses, índios e jesuítas. O que te atraiu para escrever sobre esse período? Como foi a pesquisa?
Eu tinha ideias, personagens, arco para desenvolver com cada um. A opção era partir para o fantástico ou o histórico. Acabei pendendo mais para o histórico. O século 18 é um período de grandes transformações, como qualquer outro século, contudo ele tinha um elemento que me interessava mais do que qualquer outro: o nascimento do romance de ficção, da noção de "ficção" como um gênero. Do momento inicial até a última alteração, foram 8 anos e meio trabalhando no livro. A internet me ajudou muito, por dar acesso a obras que, em outra época, seria dispendioso ou impossível, como os dicionários setecentistas digitalizados pela USP. 

Você mostra apreço pela linguagem portuguesa. Como foi a pesquisa sobre o português antigo? Em que medida esse interesse moldou a narrativa?
A descoberta desse português antigo, em desuso, foi uma consequência natural do processo de pesquisa. O momento-chave, o deus ex-machina, foi quando entrei em contato com a tradução do Paulo Henriques Britto para "Mason & Dixon", de Thomas Pynchon. Dali veio a conclusão lógica, mas que não tinha me ocorrido até então, que meus personagens deveriam se expressar e agir de acordo com o mundo em que viviam, incluindo as limitações linguísticas - ou seja, cortei todas as palavras que não fizessem parte do vocabulário português do século 18. Por exemplo, havia escrito que o personagem "reagira de modo histérico", mas o revisor atentou para o fato de que a noção de histeria só viria com Freud no século 19. Troquei por "temperamental". Outro personagem não fala em "fantasmas", mas em "abantesmas". Depois de um tempo, substituir essas palavras se tornou uma diversão.

O narrador chama a atenção pela maneira como interfere na história. Em que ponto da escrita você pensa sobre o narrador? Como foi a criação desta voz? 
O narrador foi se construindo ao longo do processo, tornou-se uma necessidade: se a narração usa as mesmas limitações linguísticas dos personagens, então é contemporâneo a eles. Como ele tomou conhecimento da história que narra? Pra quem ele narra? E, se no universo dele, o que ele conta é "real", certamente deve haver momentos em que ele aumenta, mente, inventa, para ajustar a realidade do que ele viu com a intenção do que ele quer dizer - em suma, para impor ordem ao caos, interpretação aos fatos, e lembrar que nossa visão da História é filtrada por intenções, omissões e manipulações. Há pessoas que acreditam ter sido Sherlock Holmes uma pessoa real, e outras que pensam que o Titanic só existiu na ficção. No final, não importa diferenciar, mas extrair deles um sentido pessoal.

Saiba mais

AUTOR - Além de escritor, Samir Machado é roteirista, designer gráfico e um dos criadores da Não Editora, pela qual, desde 2007, organiza a coleção Ficção de Polpa, voltada à literatura de gênero. 

"Quatro soldados", de Samir Machado de Machado
Não Editora, 320 páginas, R$ 37,9


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